O Brasil, uma nação com uma parcela significativa de sua população vivendo com alguma forma de deficiência, está no epicentro de uma transformação silenciosa, mas poderosa, impulsionada pela tecnologia assistiva (TA). Esta revolução vai muito além de meros dispositivos; ela representa a quebra de barreiras históricas e a promoção de uma inclusão genuína no ambiente de trabalho. A tecnologia assistiva, conforme definida pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI), abrange “produtos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, visando à sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social”.1 Esta definição abrangente sublinha o papel da TA em fomentar a autonomia, a independência, a qualidade de vida e a inclusão social.
O trabalho, em sua essência, transcende a mera ocupação; ele é um direito humano fundamental e a base para a dignidade, autonomia e autoestima das pessoas com deficiência (PcD). A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, proclamada pelas Nações Unidas, estabeleceu o direito ao trabalho para todos, juntamente com a remuneração justa e não discriminatória que assegure uma existência digna.2 No contexto brasileiro, a Constituição Federal de 1988 consolidou o trabalho como um pilar central da ordem social, levando à promulgação de legislações específicas, como a Lei nº 8.213/1991 (Lei de Cotas), para garantir a empregabilidade das PcD.2
Apesar do arcabouço legal robusto que o Brasil possui, incluindo a LBI que não apenas apoia a inclusão das PcD, mas também exige a provisão de tecnologia assistiva 1, existe uma lacuna notável entre a intenção legislativa e a sua aplicação prática. Estudos recentes revelam uma desconexão preocupante: a ausência de tecnologias assistivas nos locais de trabalho e uma falta generalizada de compreensão sobre o seu potencial transformador.4 Profissionais de Recursos Humanos, por exemplo, muitas vezes demonstram desconhecimento sobre o que é a tecnologia assistiva 5, e a motivação primária para a contratação de PcD frequentemente se limita ao cumprimento da Lei de Cotas, resultando na alocação dessas pessoas em “funções mais simples” baseadas em limitações percebidas, em vez de seu verdadeiro potencial.6 Essa falta de proatividade e investimento, aliada a barreiras autistas profundamente enraizadas nos ambientes corporativos, impede que o pleno potencial da tecnologia assistiva seja alcançado. Consequentemente, muitas PcD ainda são relegadas a papeis que não exploram suas capacidades, limitando seu crescimento profissional e sua verdadeira integração. A legislação, por si só, não é suficiente; uma mudança cultural e educacional profunda nas empresas e na sociedade é crucial para transcender a mera conformidade e alcançar o empoderamento e a equidade de oportunidades.
II. Pilares da Inovação: Pesquisa, Desenvolvimento e Políticas Públicas
A. O Pulso da Pesquisa: Destaque para universidades e centros de excelência
As instituições acadêmicas brasileiras estão na vanguarda da inovação em tecnologia assistiva, impulsionando a pesquisa e o desenvolvimento de soluções que prometem transformar a vida das PcD. Um exemplo notável é o Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Tecnologia Assistiva (CMDCA) na UNESP, em Bauru.7 Este centro, financiado pela Fapesp com um investimento de R$ 9 milhões ao longo de cinco anos, congrega diversos grupos de pesquisa, laboratórios universitários – incluindo UNESP, USP, UFSCar e UFABC – e entidades públicas e privadas.7 Suas quatro áreas de atuação principais são: Novas Tecnologias e Materiais para TA, Inteligência Artificial e Comunicação Alternativa, Novas Tecnologias e Materiais para Dispositivos Médicos/Órteses/Próteses, e Materiais Pedagógicos Digitais.7 Entre os projetos da UNESP, destacam-se o desenvolvimento de um exoesqueleto para indivíduos com mobilidade reduzida, próteses de bambu mais leves e econômicas, e uma joelho artificial.7
Além da pesquisa, as universidades estão ativamente engajadas na formação de uma nova geração de profissionais conscientes da importância da inclusão. Unicamp, USP, Unesp e Univesp lançaram a “Disciplina Paulista de Acessibilidade e Inclusão”.8 Este curso opcional online, inédito no Brasil, oferece 16.000 vagas anuais e visa capacitar estudantes de todas as áreas do conhecimento sobre os direitos das pessoas com deficiência, o design universal e a tecnologia assistiva.8 Essa iniciativa, em parceria com a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo, aborda diretamente a necessidade de profissionais qualificados para atuar na área da inclusão.8
A abordagem adotada pelo CMDCA, que enfatiza a conexão entre diversos grupos de pesquisa e entidades públicas/privadas, demonstra um movimento estratégico para além da pesquisa acadêmica isolada. A importância de envolver as próprias pessoas com deficiência no processo de desenvolvimento, desde a concepção, é fundamental para garantir a eficácia das tecnologias.9 A “Disciplina Paulista”, ao capacitar estudantes de todas as áreas, reconhece que o desenvolvimento e a implementação da tecnologia assistiva exigem uma compreensão ampla que transcende as fronteiras da engenharia ou da medicina. Essa abordagem intersetorial e centrada no usuário é vital para superar os desafios de “usabilidade” e “acesso” identificados no Livro Branco da Tecnologia Assistiva.10 Ela assegura que as tecnologias desenvolvidas não sejam apenas cientificamente avançadas, mas também práticas, fáceis de usar e culturalmente relevantes, marcando uma transição de um modelo puramente médico ou técnico para um modelo social e holístico da deficiência.
Os investimentos substanciais, como os R$ 9 milhões da Fapesp para o CMDCA 7, a criação da “Disciplina Paulista” 8, e o foco do programa “Novo Viver sem Limite” na formação de “agentes em tecnologia de emprego” 11, representam um esforço coordenado e estratégico por parte do governo e da academia. Essas iniciativas visam preencher a lacuna histórica de conhecimento e profissionais qualificados em tecnologia assistiva e inclusão, um problema explicitamente apontado em diversos estudos.5 Ao investir em educação e formação em diversas disciplinas, o Brasil está construindo um ecossistema fundamental que não só pode desenvolver tecnologias assistivas, mas também garantir sua implementação e integração adequadas na sociedade e no mercado de trabalho. Essa estratégia de longo prazo busca criar uma força de trabalho e uma sociedade mais informada e inclusiva, promovendo uma mudança sistêmica e proativa.
B. Estratégias Nacionais e Colaborações: Análise de programas governamentais e o papel de organizações da sociedade civil
Além da pesquisa acadêmica, planos nacionais e organizações da sociedade civil desempenham um papel crucial na promoção de um ambiente inclusivo. O Plano Nacional de Tecnologia Assistiva (PNTA) é uma iniciativa federal fundamental, que visa apoiar a pesquisa, o desenvolvimento tecnológico, a inovação e a disponibilidade de produtos e dispositivos de tecnologia assistiva.1 Seu objetivo primordial é promover a autonomia e a independência das PcD, superando a exclusão social e as barreiras de acesso à educação, saúde, trabalho, lazer, transporte e moradia.1 O PNTA busca facilitar o acesso a crédito especializado, agilizar os procedimentos de importação, fomentar a produção nacional, eliminar ou reduzir a tributação sobre a TA e facilitar a inclusão de recursos de TA no SUS..1
Outro programa governamental de destaque é o “Novo Viver sem Limite”, lançado em novembro de 2023, com um orçamento de R$ 13 bilhões.11 Uma de suas ações mais importantes é a “formação de agentes em tecnologia de emprego”, que visa capacitar 2.000 profissionais para eliminar barreiras, preparar locais de trabalho, intermediar entre PcD e empresas, e apoiar o processo de integração.11 O programa reconhece as diversas especificidades das PcD, enfatizando que “o que serve para uma pessoa com deficiência visual, por exemplo, pode não servir para uma pessoa com deficiência auditiva” 11, buscando garantir o acesso às vagas de trabalho legalmente asseguradas.
No setor corporativo, o “Programa de Inclusão em Facilities para PcDs” da JLL é uma iniciativa pioneira no Brasil.13 Este programa contrata, treina e desenvolve profissionais PcD, garantindo a provisão de “todo o equipamento necessário para período de formação e trabalho, bem como eventual tecnologia assistiva”.13 Essa iniciativa demonstra um compromisso corporativo tangível com a tecnologia assistiva.
Apesar de o Brasil possuir um arcabouço legal progressista e planos nacionais ambiciosos, como o PNTA e o “Novo Viver sem Limite”, que visam fomentar o acesso, à produção e a acessibilidade da TA 3, o mercado ainda enfrenta desafios significativos. Há escassez de produtos nacionais e importados, altos custos e uma notável falta de incentivos fiscais e de crédito para pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I).10 O mercado é predominantemente suprido por micro e pequenas empresas, que, embora ágeis na criação de novos nichos econômicos, carecem de capacidade financeira para expansão.14 Além disso, processos burocráticos de registro e certificação aumentam os custos e atrasam a entrada de produtos no mercado.10 Essa situação cria um paradoxo: enquanto a demanda legal por TA é forte, a oferta e a acessibilidade no mercado são limitadas. Isso sugere que, para além do financiamento governamental, é essencial desenvolver um setor privado robusto, simplificar os processos regulatórios e mudar a percepção do mercado de “nicho” para “essencial”, a fim de democratizar verdadeiramente o acesso à TA.
A iniciativa de formar “agentes em tecnologia de emprego” dentro do programa “Novo Viver sem Limite” 11 representa uma intervenção estratégica e centrada no ser humano. Ao invés de apenas impor cotas, o governo reconhece a necessidade de capital humano especializado para facilitar a integração prática das PcD. Essa abordagem visa profissionalizar o processo de inclusão, tornando-o mais eficaz e adaptado às necessidades individuais, o que pode melhorar significativamente a retenção e o avanço na carreira das PcD, garantindo um emprego mais significativo e sustentável.
C. Desafios e Oportunidades: Discussão sobre barreiras e o potencial de crescimento
Apesar dos avanços e do crescente reconhecimento da tecnologia assistiva, o Brasil ainda enfrenta desafios consideráveis em seu desenvolvimento e implementação, ao lado de vastas oportunidades.
Desafios:
O mercado brasileiro de TA ainda é caracterizado por uma “gama muito limitada” de produtos que não atendem plenamente às necessidades reais dos usuários.1 Há uma “escassez de produtos de TA, tanto nacionais quanto importados, e altos custos”, com o mercado predominantemente suprido por micro e pequenas empresas. A falta de incentivos fiscais e de crédito, bem como o investimento insuficiente em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I), são barreiras significativas.14 O Livro Branco da Tecnologia Assistiva detalha processos de registro e certificação “longos e lentos”, “burocráticos e irracionais”, que elevam os custos.10 Além disso, há uma falta generalizada de conscientização sobre a TA entre o público, as PcD e os profissionais 10, e uma escassez de profissionais treinados.10
Barreiras atitudinais persistem, como a discriminação e as percepções negativas preconcebidas sobre a capacidade de trabalho das PcD.3 Empregadores e colegas muitas vezes desvalorizam suas habilidades, focando na deficiência em vez da competência, e as PcD são frequentemente alocadas em funções não alinhadas às suas qualificações.3 A inadequação das estruturas físicas e os altos custos de adaptação para deficiências mais severas também levam os empregadores a evitar a contratação.3 Um estudo revelou que profissionais de RH em uma empresa sequer sabiam o que era tecnologia assistiva.5 Além disso, a história de Valentina ilustra uma barreira sistêmica onde o medo de perder benefícios sociais (como o BPC) desincentiva o emprego formal para PcD.16
Oportunidades:
O cenário legal brasileiro é favorável, com a LBI exigindo acesso à TA e promovendo PD&I.3 O programa “Novo Viver sem Limite”, com seu orçamento de R$ 13 bilhões, visa explicitamente integrar inovações em TA.11 O mercado global de TA está em rápida expansão, avaliado em US$ 21,95 bilhões em 2022 e projetado para atingir US$ 31,22 bilhões até 2030, o que representa uma “oportunidade econômica para o Brasil”.14 A predominância de micro e pequenas empresas no Brasil oferece uma “maior capacidade de desenvolver rapidamente novos nichos econômicos” para produtos de TA menos complexos.14 Os objetivos do PNTA, como a facilitação de crédito, a simplificação das importações e a redução de impostos, abordam diretamente as barreiras do mercado.12 Iniciativas acadêmicas como o CMDTA e a “Disciplina Paulista” estão construindo uma base sólida para o desenvolvimento da TA e a formação profissional.7 A ênfase no envolvimento das PcD no desenvolvimento da TA é uma oportunidade chave para criar soluções verdadeiramente eficazes e utilizáveis.9






